Sente e fique à vontade, lá vem história!
Le Monde Bizarre: O Circo dos Horrores (Estronho, 208 páginas, R$ 32,90) é uma antologia de contos de terror e medo com uma temática muito especial. Quem nunca viu aqueles filmes onde há uma mulher barbada, um anão e um "homem mais forte do mundo"? Não estou falando de "Monga, a Mulher Gorila" que não passava de um jogo de espelhos e luzes. Os shows de horrores eram feitos com gente de verdade e muitas dessas atrações ficaram famosas em sua época. Havia mesmo no Brasil lugares, como o Museu de Salvador, em que as cabeças de Lampião e o resto do bando ficaram expostas ao público até 1964 (assim o Estado expunha o vencido cangaceiro para quem ainda duvidasse disso). Vocês esquisitos, se quiserem, podem ver a foto da tal exposição escrota com o Google Imagens.
Eu poderia dizer aqui que não tenho nada contra gente maluca mas contra esse tipo de maluco específico, que sente essa atração sádica pelo torpe e pelo escabroso, eu tenho tudo contra! Outro dia mesmo veio aqui na minha sala um funcionário com um celular recheado de fotos de corpos estraçalhados que eu recomendei gentilmente que ele enfiasse naquele seu lugar quente e apertado (tem gente sem noção que não tem vergonha de expor essa morbidez estapafúrdia que os leva até um acidente de ônibus e clica sem parar a desgraça alheia e ainda sai por aí se perfazendo). Corpos deformados parecem surtir grande atração em mentes deformadas. O sadismo humano, que antes se deliciava vendo irmãos siameses e mulheres de três seios, hoje em dia tem o You Tube e o Discovery Chanel.
Certamente, com o progresso, a mulher barbada teve que apelar para a Gillette e procurar um emprego mais convencional, os anões tiveram que se ocupar vestindo-se como duendes para animar festinhas e o "homem mais forte do mundo" se diluiu nas tropas de marombados tão comuns academias afora. Eu não tive estômago, confesso. Existem coisas perturbadoras demais para mim. Até museus de cera me perturbam, pois a semelhança que se deseja alcançar faz com que as esculturas pareçam demais com gente de verdade empalhada (sentiu um arrepio?). Portanto vamos para a Resenha. Nosso negócio aqui são os livros.
À Cidade de Metropia. Começamos com um bom conto de Kássia Neves Monteiro. Aqui vemos a formação da trupe de Monsieur Serge Tissot, o homem que se transforma em monstro depois de uma grande perda. Ele apela para as artes ocultas e se torna imortal. Essa introdução ao livro é escrita de forma epistolar por Callabare, um integrante da trupe, numa carta que endereça sempre à próxima cidade em que Le Monde Bizarre se apresentará, com a intenção de avisar a população do mal que advirá (se fosse a primeira vez que Callabare estivesse fazendo isso, tudo bem, mas como a autora diz ele faz isso sempre, não entendo como o circo não foi ainda caçado e destruído). Há passagens muito boas e o etilo da autora nos remete a uma leitura clássica, com seus rebuscamentos gramaticais, mas às vezes ela tenta reinventar a língua com construções meio estapafúrdias. Isso em nada diminui a beleza de sua escrita, mas a passagem em que os "artistas" tem que destrinchar o corpo do patrão com uma faca de ouro, sim, diminui. Falta o convencimento, aqui. Nota seis.
O Segundo conto (Desfile, de Duda Falcão) é muito... muito ruim. Uma cidade assiste à parada do circo quando chega, com suas aberrações e criaturas demoníacas. Depois de a cidade toda sumir, com exceção de cinco ou seis pessoas que não assistiram à parada, as “autoridades” acabam por internar as que sobraram por alucinação coletiva. É de se perguntar se mesmo uma criança de oito anos não levantaria a questão: “mas como assim, alucinação coletiva? A cidade inteira não sumiu mesmo?” Frases sem pé nem cabeça, desconhecimento da estrutura do conto, falta de coesão e clareza e muito mais. Tenta dar um ar erudito empregando construções estapafúrdias conseguindo apenas um texto bem primário, mesmo! A Editora deveria ter tido a habilidade de comunicar ao autor os problemas de seu conto e recusá-lo! É uma pena, um completo desserviço ao autor que se queima e aos seus companheiros de antologia. De uma nota seis do bom conto anterior de Kássia Neves Monteiro, passamos a um três, para Desfile, de Duda Falcão.
Em seguida temos o bom conto de Alexandre Heredia, Freak. Imagine você estar neste circo, do lado de fora, animado mas tentando decidir onde gastar seus trocados. Então você ouve um daqueles pregoeiros que ficam falando sem parar, tentando convencer as pessoas a pagarem o ingresso e assistirem a uma determinada atração. É pela boca deste homem que somos convidados a entrar e, para isso, vai nos contando o que há do outro lado. É o melhor conto até aqui. Imaginem um menino amado pela mãe e irremediavelmente feio (não aos olhos dela, é claro). Quando o menino vai à escola pela primeira vez, descobre que não é belo através das maldades que só as crianças são capazes (ponto para o autor que soube muito bem colocar esta questão, no seu texto) e então, de uma forma que só poderíamos esperar num episódio de “Além da Imaginação”, o menino descobre como ficar belo. Agrega o espírito da coletânea muito bem. Nota sete!
O circo Le Monde Bizarre viaja e chegamos ao ótimo conto Sinfonia dos Mortos, de Pedro de Almada. Para um primeiro trabalho publicado em livro, temos um verdadeiro achado! Pedro de Almada tem uma fluidez praticamente perfeita, num conto que, embora se revele previsível, é muito bem burilado. Uma história criativa com a introdução de criaturas assustadoras e muito bem engendradas a lá Tim Burton. Quase dá para ver Johnny Depp e sua esposa Helena Bonham Carter circulando em segundo plano, com maquiagens brancas e pesadas. Tétrico sem ser agourento, sinistro sem ser clichê. Os pequenos problemas de lógica narrativa não chegam a comprometer em nada o resultado final. Temos um oito aqui!
O conto seguinte é da editora do selo Fantas, da Editora Estronho, Celly Borges. Jackie conta a história de uma menina. Mas uma menina muito diferente das demais (estamos nos domínios de monsieur Serge Tissot e o que vem dele nunca é o convencional!). Um conto com referências claras à Mary Shelley e ao Mágico de Oz, passando por Jack o Estripador e até filmes adolescentes de terror, com seu grupo de namorados sentados à beira de uma fogueira contando histórias de terror. O pano e fundo é Londres, e Jackie quer um coração, um coração que lhe permita sentir, sejam bons ou maus sentimentos; portanto, vai atrás de um... Boa narrativa, segura e eficaz, embora cometendo alguns deslizes quanto à complexidade de algumas orações que numa revisão mais focada poderiam ser identificados. A inocência de Jackie e sua solidão são, contudo, cativantes. Nota seis aqui.
Medicina Transformadora: Um Contrato Poderoso, da portuguesa, nascida na Ilha da Madeira, Valentina da Silva Pereira, nos traz um pouco do charme do português europeu para as páginas de Le Monde Bizarre, o Circo dos Horrores. A habilidade escrita da autora é excelente. Um médico maluco se oferece ao dono do circo, Serge Tissot, para “criar atrações” em troca de poder treinar suas técnicas de embelezamento humano, o que ele chama de Medicina Transformadora (seria a cirurgia plástica?). Recebe então cinco monstruosidades em troca de tornar uma rapariga (hihihihi), por quem Tissot tinha sido rejeitado, num monstro horrível. A narrativa weird-machadiana de Pereira soa bem do início ao fim, com “excentricidades” inerentes à linha fantástica que resolve trilhar, ácida e cruel. Nota sete.
De Lucas Lourenço, temos o conto O Garoto de Ferro, que nos conta a história do pequeno Smutny, que vivia no vilarejo de Szkielet, a 20 km de Bialystok, e seu horrível tio Czaszka. Muito engraçados e imaginativos os nomes que o autor cria para situar a história em algum ponto fictício da Europa Oriental. O ano é 1940 e o país está tomado pelos “casacos vermelhos” (como são chamados os invasores). É nesse contexto nazi-fascista que descobrimos que Smutny vive com o tio Czaszka, um bêbado violento que abusa e humilha o pequeno garoto. Smutny um dia vê chegando o circo de horrores e decide dar uma escapada para ver do que se trata. Descobrimos que a deformação moral é algo muito pior que a física. É interessante como a interpretação pessoal de cada um dos autores da antologia vê Monsieur Serge Tissot à sua maneira. Aqui, Tissot é até um “bom” velhinho. O final da história nos leva ao título do conto, pecando só por não ser tão inspirado assim. Nota oito.
O Maior Espetáculo da Terra dos Mortos, de Rochett Tavares, pode ser classificado como mediano. Vemos um conceito de terror bastante difundido hoje em dia nos filmes onde a imagem se afogando em sangue sempre vale mais que o conteúdo. Esquece-se do medo, do surpreendente e do misterioso para se concentrar no repugnante, no apelativo e no escatológico. Palavras pinçadas do dicionário (e o que é pior: pouco ou totalmente imprecisas). História mal elaborada, artificializada e meio maluca, sobre uma apresentação do circo, também no leste europeu, mas dessa vez com alusões a lugares geográficos reais, como os Cárpatos, Transilvânia etc. Vemo-nos numa situação mais bizarra do que o próprio Le Monde Bizarre, onde os moradores de uma cidade são mais estranhos do que as atrações do circo. Nota cinco.
Iam Godoy vem em seguida com seu Sake em Aokigahara. A história surprende por nos lançar num mundo totalmente diferente do até então apresentado. Estamos em pleno Japão contemporâneo, senhoras e senhores! Fiquei bem interessado e, conforme avançamos, palavras em japonês vão aparecendo e dão um tom mais pitoresco ao texto, servindo bem à ambientação, mas então vão se multiplicando e excedem o limite do bom senso. Pequenos defeitos como este desviam a atenção do leitor do essencial, por isso seria aconselhável deixar o excesso de alegorias de fora. O texto é sobre um grupo de agentes especilizados em resgatar corpos, que trabalham ao pé do Monte Fuji, onde as pessoas tem o hábito de se suicidar. Um argumento bem interessante e, por isso (mais a sacada de meter a trupe na terra do sol nascente), leva nota seis.
De João Manuel da Silva Rogaciano, Pesadelo Interminável também traz o português europeu para as páginas da antologia. Neste conto, o personagem principal desvenda acontecimentos ocorridos mais de setenta anos antes, quando ainda criança. A chegada do circo numa pequena vila traz consigo o massacre, após seu primeiro espetáculo. O menino com ainda treze anos é o único sobrevivente, e vê os seres do circo retornarem com sangue e visceras que são distribuídas sobre o corpo centenário de Monsier Tissot. Após um ritual mágico o dono do circo recobra a juventude. O personagem central então, já adulto, decide agir e destruir o circo com suas próprias mãos. Neste intento sofre um terrível acidente e após passar por internações, reencontra Tissot no encerramento do conto, com final surpreendente. Como outros contos deste volume, a narrativa parece sempre se ater ao presente dos acontecimentos e não fornecem boas justificativas para o passado e futuro da história. Como é que o circo passa por lugarejos dos mais diversos e dezenas de pessoas desaparecem e a polícia nada faz? Tirando umas passagens menos críveis, um ótimo conto! Nota oito.
Remendos de Carne é um conto de Rafael Sales sobre uma assutadora menina boneca que tenta vingar-se de um pedófilo que destruiu sua vida. Durante um espetáculo do Le Monde, Artur, o criminoso, é reconhecido na platéia pela hedionda menina e, ao sair para fumar um cigarro, ela o enfrenta. A história é contada de uma forma um tanto artificial, com inserções do autor sobre o passado do homem como professor e assim nos descreve seus crimes. A narrativa é boa embora com umas imagens não lá muito criativas e diálogos meio forçados. Temos erros de português numa quantidade maior que o aceitável demonstrando pouca familiaridade do autor com a escrita e falha da editora Estronha de não tê-los estirpado. A história é um tanto esdrúxula e não convence completamente. Nota cinco.
O Trailer é um ótimo conto do gaúcho A. Z. Cordenonsi. Conta-nos uma história inusitada em Nova Orleans, nos EUA, após a passagem do furacão Katrina. Bernard retorna após quatro anos sem ver a mãe que vive com outras duas tias solteironas no circo, cozinhando para os funcionários e viajando num trailer. O conhecimento do corpus é excelente e o autor sabe perfeitamente sobre os costumes, cidades e pessoas que descreve. Por alguma razão um dos trailers que acompanham a comitiva parece sempre mudar, ficando mais vistoso e belo da noite para o dia, sem que os personagens vejam quem realiza a manutenção do mesmo. O final é meio simples demais e, só por um pouquinho, poderia ser realmente bom, interrompendo o texto sem uma solução inventiva que feche o trabalho do autor. Mesmo assim, nota oito, pelo talento no restante todo da obra.
Chegamos ao que poderia ser o melhor conto da antologia, se não fosse o início, um pouco confuso. Termos em francês não ajudam também e soam meio excessivos. Faça Seu Pedido, nos coloca como ouvintes de uma conversa entre amigos que chegam a uma apresentação do circo de excentricidades nas cercanias de Paris. O tom sobrenatural tão utilizado até aqui nos outros contos é substituído por uma versão mais light, o que, confesso, é um alento. Aós um truque barato a jovem atriz Désirée conversa por um instante com o dono do circo e um perturbador pacto é firmado, mas há um preço salgado a pagar! Aí temos um toque genial da jovem G. Araujo, um argumento nota dez e absolutamente bem escrito. Muito bom! A escritora não titubeia um único instante. Somos levados por ela num fluxo contínuo e suave até seu desfecho. Boas orações e compreenção do real sentido do fantástico. Ótima noção da estrutura do conto (com excessão do início, como já falei). Nota oito, com louvor!
Encerrando esta antologia, O Ocupante do Carro Vermelho, de autoria do mineiro M. D. Amado, editor da Estronho, é um típico conto de terror onde um demônio é exibido como atração no Le Monde Bizarre. Falta algum traquejo ao escritor para dar ritmo ao conto, que faz Tissot contar para a platéia como aquela atração veio parar no circo. É um falar sem parar. O demônio é mantido dócil através de um colar dado por alienígenas (vichi Maria!). Muito conteúdo pouco digerido em curto espaço costuma causar certa indisposição no leitor mais atento. Temos uma coisa de se raptar alguns dos moradores da cidade para atrair o restante para o circo, que não ficou bom. O autor tenta justificar coisas injustificáveis e não consegue mesmo. As reações dos personagens são atropeladas pelos acontecimentos e tudo fica meio sem sentido no final. Nota cinco.
Eu, por algum motivo, tenho medo/ repulsa/ pena de palhaços (riam se quiserem!). São tudo menos engraçados para mim, de tal forma que quando vejo um, trato de sair de perto (vai entender...). Que tipo de sujeito sem-noção pinta a cara e sai por aí mexendo com gente que não conhece? Resposta: o palhaço! Por isso acho o Coringa um dos vilões mais filhos da mãe do universo dos super-heróis. Aquela cara de palhaço me incomoda e a cara da capa do Le Monde Bizarre é MUUUUITO parecida com a cara do Coringa. Quando a vi pela primeira vez não achei que fosse outra coisa senão um livro sobre o Batman. Este equívoco não é bom, já que a capa é o cartão de visitas de uma obra. De resto, uma excelente diagramação da Editora Estronho e uma temática muito inteligente. Um livro que agrega autores iniciantes e alguns com pouco mais de experiência e é uma boa opção para quem quer um livro capaz de proporcionar algumas boas horas de entretenimento. O livro possui momentos de lúdica fantasia e perfeita sintonia entre escritor e leitor. Boa pedida para uns minutos de terror, antes de dormir!
Eu poderia dizer aqui que não tenho nada contra gente maluca mas contra esse tipo de maluco específico, que sente essa atração sádica pelo torpe e pelo escabroso, eu tenho tudo contra! Outro dia mesmo veio aqui na minha sala um funcionário com um celular recheado de fotos de corpos estraçalhados que eu recomendei gentilmente que ele enfiasse naquele seu lugar quente e apertado (tem gente sem noção que não tem vergonha de expor essa morbidez estapafúrdia que os leva até um acidente de ônibus e clica sem parar a desgraça alheia e ainda sai por aí se perfazendo). Corpos deformados parecem surtir grande atração em mentes deformadas. O sadismo humano, que antes se deliciava vendo irmãos siameses e mulheres de três seios, hoje em dia tem o You Tube e o Discovery Chanel.
Certamente, com o progresso, a mulher barbada teve que apelar para a Gillette e procurar um emprego mais convencional, os anões tiveram que se ocupar vestindo-se como duendes para animar festinhas e o "homem mais forte do mundo" se diluiu nas tropas de marombados tão comuns academias afora. Eu não tive estômago, confesso. Existem coisas perturbadoras demais para mim. Até museus de cera me perturbam, pois a semelhança que se deseja alcançar faz com que as esculturas pareçam demais com gente de verdade empalhada (sentiu um arrepio?). Portanto vamos para a Resenha. Nosso negócio aqui são os livros.
À Cidade de Metropia. Começamos com um bom conto de Kássia Neves Monteiro. Aqui vemos a formação da trupe de Monsieur Serge Tissot, o homem que se transforma em monstro depois de uma grande perda. Ele apela para as artes ocultas e se torna imortal. Essa introdução ao livro é escrita de forma epistolar por Callabare, um integrante da trupe, numa carta que endereça sempre à próxima cidade em que Le Monde Bizarre se apresentará, com a intenção de avisar a população do mal que advirá (se fosse a primeira vez que Callabare estivesse fazendo isso, tudo bem, mas como a autora diz ele faz isso sempre, não entendo como o circo não foi ainda caçado e destruído). Há passagens muito boas e o etilo da autora nos remete a uma leitura clássica, com seus rebuscamentos gramaticais, mas às vezes ela tenta reinventar a língua com construções meio estapafúrdias. Isso em nada diminui a beleza de sua escrita, mas a passagem em que os "artistas" tem que destrinchar o corpo do patrão com uma faca de ouro, sim, diminui. Falta o convencimento, aqui. Nota seis.
O Segundo conto (Desfile, de Duda Falcão) é muito... muito ruim. Uma cidade assiste à parada do circo quando chega, com suas aberrações e criaturas demoníacas. Depois de a cidade toda sumir, com exceção de cinco ou seis pessoas que não assistiram à parada, as “autoridades” acabam por internar as que sobraram por alucinação coletiva. É de se perguntar se mesmo uma criança de oito anos não levantaria a questão: “mas como assim, alucinação coletiva? A cidade inteira não sumiu mesmo?” Frases sem pé nem cabeça, desconhecimento da estrutura do conto, falta de coesão e clareza e muito mais. Tenta dar um ar erudito empregando construções estapafúrdias conseguindo apenas um texto bem primário, mesmo! A Editora deveria ter tido a habilidade de comunicar ao autor os problemas de seu conto e recusá-lo! É uma pena, um completo desserviço ao autor que se queima e aos seus companheiros de antologia. De uma nota seis do bom conto anterior de Kássia Neves Monteiro, passamos a um três, para Desfile, de Duda Falcão.
Em seguida temos o bom conto de Alexandre Heredia, Freak. Imagine você estar neste circo, do lado de fora, animado mas tentando decidir onde gastar seus trocados. Então você ouve um daqueles pregoeiros que ficam falando sem parar, tentando convencer as pessoas a pagarem o ingresso e assistirem a uma determinada atração. É pela boca deste homem que somos convidados a entrar e, para isso, vai nos contando o que há do outro lado. É o melhor conto até aqui. Imaginem um menino amado pela mãe e irremediavelmente feio (não aos olhos dela, é claro). Quando o menino vai à escola pela primeira vez, descobre que não é belo através das maldades que só as crianças são capazes (ponto para o autor que soube muito bem colocar esta questão, no seu texto) e então, de uma forma que só poderíamos esperar num episódio de “Além da Imaginação”, o menino descobre como ficar belo. Agrega o espírito da coletânea muito bem. Nota sete!
O circo Le Monde Bizarre viaja e chegamos ao ótimo conto Sinfonia dos Mortos, de Pedro de Almada. Para um primeiro trabalho publicado em livro, temos um verdadeiro achado! Pedro de Almada tem uma fluidez praticamente perfeita, num conto que, embora se revele previsível, é muito bem burilado. Uma história criativa com a introdução de criaturas assustadoras e muito bem engendradas a lá Tim Burton. Quase dá para ver Johnny Depp e sua esposa Helena Bonham Carter circulando em segundo plano, com maquiagens brancas e pesadas. Tétrico sem ser agourento, sinistro sem ser clichê. Os pequenos problemas de lógica narrativa não chegam a comprometer em nada o resultado final. Temos um oito aqui!
O conto seguinte é da editora do selo Fantas, da Editora Estronho, Celly Borges. Jackie conta a história de uma menina. Mas uma menina muito diferente das demais (estamos nos domínios de monsieur Serge Tissot e o que vem dele nunca é o convencional!). Um conto com referências claras à Mary Shelley e ao Mágico de Oz, passando por Jack o Estripador e até filmes adolescentes de terror, com seu grupo de namorados sentados à beira de uma fogueira contando histórias de terror. O pano e fundo é Londres, e Jackie quer um coração, um coração que lhe permita sentir, sejam bons ou maus sentimentos; portanto, vai atrás de um... Boa narrativa, segura e eficaz, embora cometendo alguns deslizes quanto à complexidade de algumas orações que numa revisão mais focada poderiam ser identificados. A inocência de Jackie e sua solidão são, contudo, cativantes. Nota seis aqui.
Medicina Transformadora: Um Contrato Poderoso, da portuguesa, nascida na Ilha da Madeira, Valentina da Silva Pereira, nos traz um pouco do charme do português europeu para as páginas de Le Monde Bizarre, o Circo dos Horrores. A habilidade escrita da autora é excelente. Um médico maluco se oferece ao dono do circo, Serge Tissot, para “criar atrações” em troca de poder treinar suas técnicas de embelezamento humano, o que ele chama de Medicina Transformadora (seria a cirurgia plástica?). Recebe então cinco monstruosidades em troca de tornar uma rapariga (hihihihi), por quem Tissot tinha sido rejeitado, num monstro horrível. A narrativa weird-machadiana de Pereira soa bem do início ao fim, com “excentricidades” inerentes à linha fantástica que resolve trilhar, ácida e cruel. Nota sete.
De Lucas Lourenço, temos o conto O Garoto de Ferro, que nos conta a história do pequeno Smutny, que vivia no vilarejo de Szkielet, a 20 km de Bialystok, e seu horrível tio Czaszka. Muito engraçados e imaginativos os nomes que o autor cria para situar a história em algum ponto fictício da Europa Oriental. O ano é 1940 e o país está tomado pelos “casacos vermelhos” (como são chamados os invasores). É nesse contexto nazi-fascista que descobrimos que Smutny vive com o tio Czaszka, um bêbado violento que abusa e humilha o pequeno garoto. Smutny um dia vê chegando o circo de horrores e decide dar uma escapada para ver do que se trata. Descobrimos que a deformação moral é algo muito pior que a física. É interessante como a interpretação pessoal de cada um dos autores da antologia vê Monsieur Serge Tissot à sua maneira. Aqui, Tissot é até um “bom” velhinho. O final da história nos leva ao título do conto, pecando só por não ser tão inspirado assim. Nota oito.
O Maior Espetáculo da Terra dos Mortos, de Rochett Tavares, pode ser classificado como mediano. Vemos um conceito de terror bastante difundido hoje em dia nos filmes onde a imagem se afogando em sangue sempre vale mais que o conteúdo. Esquece-se do medo, do surpreendente e do misterioso para se concentrar no repugnante, no apelativo e no escatológico. Palavras pinçadas do dicionário (e o que é pior: pouco ou totalmente imprecisas). História mal elaborada, artificializada e meio maluca, sobre uma apresentação do circo, também no leste europeu, mas dessa vez com alusões a lugares geográficos reais, como os Cárpatos, Transilvânia etc. Vemo-nos numa situação mais bizarra do que o próprio Le Monde Bizarre, onde os moradores de uma cidade são mais estranhos do que as atrações do circo. Nota cinco.
Iam Godoy vem em seguida com seu Sake em Aokigahara. A história surprende por nos lançar num mundo totalmente diferente do até então apresentado. Estamos em pleno Japão contemporâneo, senhoras e senhores! Fiquei bem interessado e, conforme avançamos, palavras em japonês vão aparecendo e dão um tom mais pitoresco ao texto, servindo bem à ambientação, mas então vão se multiplicando e excedem o limite do bom senso. Pequenos defeitos como este desviam a atenção do leitor do essencial, por isso seria aconselhável deixar o excesso de alegorias de fora. O texto é sobre um grupo de agentes especilizados em resgatar corpos, que trabalham ao pé do Monte Fuji, onde as pessoas tem o hábito de se suicidar. Um argumento bem interessante e, por isso (mais a sacada de meter a trupe na terra do sol nascente), leva nota seis.
De João Manuel da Silva Rogaciano, Pesadelo Interminável também traz o português europeu para as páginas da antologia. Neste conto, o personagem principal desvenda acontecimentos ocorridos mais de setenta anos antes, quando ainda criança. A chegada do circo numa pequena vila traz consigo o massacre, após seu primeiro espetáculo. O menino com ainda treze anos é o único sobrevivente, e vê os seres do circo retornarem com sangue e visceras que são distribuídas sobre o corpo centenário de Monsier Tissot. Após um ritual mágico o dono do circo recobra a juventude. O personagem central então, já adulto, decide agir e destruir o circo com suas próprias mãos. Neste intento sofre um terrível acidente e após passar por internações, reencontra Tissot no encerramento do conto, com final surpreendente. Como outros contos deste volume, a narrativa parece sempre se ater ao presente dos acontecimentos e não fornecem boas justificativas para o passado e futuro da história. Como é que o circo passa por lugarejos dos mais diversos e dezenas de pessoas desaparecem e a polícia nada faz? Tirando umas passagens menos críveis, um ótimo conto! Nota oito.
Remendos de Carne é um conto de Rafael Sales sobre uma assutadora menina boneca que tenta vingar-se de um pedófilo que destruiu sua vida. Durante um espetáculo do Le Monde, Artur, o criminoso, é reconhecido na platéia pela hedionda menina e, ao sair para fumar um cigarro, ela o enfrenta. A história é contada de uma forma um tanto artificial, com inserções do autor sobre o passado do homem como professor e assim nos descreve seus crimes. A narrativa é boa embora com umas imagens não lá muito criativas e diálogos meio forçados. Temos erros de português numa quantidade maior que o aceitável demonstrando pouca familiaridade do autor com a escrita e falha da editora Estronha de não tê-los estirpado. A história é um tanto esdrúxula e não convence completamente. Nota cinco.
O Trailer é um ótimo conto do gaúcho A. Z. Cordenonsi. Conta-nos uma história inusitada em Nova Orleans, nos EUA, após a passagem do furacão Katrina. Bernard retorna após quatro anos sem ver a mãe que vive com outras duas tias solteironas no circo, cozinhando para os funcionários e viajando num trailer. O conhecimento do corpus é excelente e o autor sabe perfeitamente sobre os costumes, cidades e pessoas que descreve. Por alguma razão um dos trailers que acompanham a comitiva parece sempre mudar, ficando mais vistoso e belo da noite para o dia, sem que os personagens vejam quem realiza a manutenção do mesmo. O final é meio simples demais e, só por um pouquinho, poderia ser realmente bom, interrompendo o texto sem uma solução inventiva que feche o trabalho do autor. Mesmo assim, nota oito, pelo talento no restante todo da obra.
Chegamos ao que poderia ser o melhor conto da antologia, se não fosse o início, um pouco confuso. Termos em francês não ajudam também e soam meio excessivos. Faça Seu Pedido, nos coloca como ouvintes de uma conversa entre amigos que chegam a uma apresentação do circo de excentricidades nas cercanias de Paris. O tom sobrenatural tão utilizado até aqui nos outros contos é substituído por uma versão mais light, o que, confesso, é um alento. Aós um truque barato a jovem atriz Désirée conversa por um instante com o dono do circo e um perturbador pacto é firmado, mas há um preço salgado a pagar! Aí temos um toque genial da jovem G. Araujo, um argumento nota dez e absolutamente bem escrito. Muito bom! A escritora não titubeia um único instante. Somos levados por ela num fluxo contínuo e suave até seu desfecho. Boas orações e compreenção do real sentido do fantástico. Ótima noção da estrutura do conto (com excessão do início, como já falei). Nota oito, com louvor!
Encerrando esta antologia, O Ocupante do Carro Vermelho, de autoria do mineiro M. D. Amado, editor da Estronho, é um típico conto de terror onde um demônio é exibido como atração no Le Monde Bizarre. Falta algum traquejo ao escritor para dar ritmo ao conto, que faz Tissot contar para a platéia como aquela atração veio parar no circo. É um falar sem parar. O demônio é mantido dócil através de um colar dado por alienígenas (vichi Maria!). Muito conteúdo pouco digerido em curto espaço costuma causar certa indisposição no leitor mais atento. Temos uma coisa de se raptar alguns dos moradores da cidade para atrair o restante para o circo, que não ficou bom. O autor tenta justificar coisas injustificáveis e não consegue mesmo. As reações dos personagens são atropeladas pelos acontecimentos e tudo fica meio sem sentido no final. Nota cinco.
Eu, por algum motivo, tenho medo/ repulsa/ pena de palhaços (riam se quiserem!). São tudo menos engraçados para mim, de tal forma que quando vejo um, trato de sair de perto (vai entender...). Que tipo de sujeito sem-noção pinta a cara e sai por aí mexendo com gente que não conhece? Resposta: o palhaço! Por isso acho o Coringa um dos vilões mais filhos da mãe do universo dos super-heróis. Aquela cara de palhaço me incomoda e a cara da capa do Le Monde Bizarre é MUUUUITO parecida com a cara do Coringa. Quando a vi pela primeira vez não achei que fosse outra coisa senão um livro sobre o Batman. Este equívoco não é bom, já que a capa é o cartão de visitas de uma obra. De resto, uma excelente diagramação da Editora Estronho e uma temática muito inteligente. Um livro que agrega autores iniciantes e alguns com pouco mais de experiência e é uma boa opção para quem quer um livro capaz de proporcionar algumas boas horas de entretenimento. O livro possui momentos de lúdica fantasia e perfeita sintonia entre escritor e leitor. Boa pedida para uns minutos de terror, antes de dormir!
ALBARUS ANDREOS