Quando o filme é melhor que o livro
O
Rebelde (Fantasy-Casa da Palavra, 400 páginas, R$ 39,90) é o primeiro livro da série
Corações Valentes, do escocês Jack Whyte publicado no Brasil.
A
Editora Fantasy emprestou este nome para a trilogia (que no original é: 'The Guardians of Scotland', ou seja, Os
Guardiões da Escócia) para tentar tomar uma carona num blockbuster de
Hollywood, de 1995, famoso até hoje. A estratégia é que, já que este primeiro
volume retrata a vida de Willian Wallace, um dos grandes patriotas escoceses de
todos os tempos, e personagem do filme de 1995, então as pessoas iriam ligar a
excelência do filme às páginas de Jack Whyte, que ainda não tem lá, um
"nome", no Brasil.
Se
você esteve morando em Marte nos anos 90 ou se seu cérebro foi comido por
zumbis, ou se simplesmente não assistiu ao filme, bem... Coração Valente foi um
dos melhores filmes estrelados pelo americano Mel Gibson e ganhou o Oscar por
isso. Gibson sempre foi um sincero crítico ao imperialismo inglês em todos os
tempos (numa época em que só aparecia na imprensa para falar de seus filmes e
não para justificar as agressões às esposas, por dirigir bêbado, ou ofender policiais
judeus, como fez nos últimos anos).
Eu,
pessoalmente, considero Coração Valente um FILMAÇO e é um dos meus favoritos de
todos os tempos. Contudo, se nunca tivesse visto o filme, nunca viria saber
quem é esse tal Willian Wallace. Daí o gancho, inevitável, tomado pela Editora
Fantasy.
O
livro é muito bom, tirando umas ligeiras decepções que explico em seguida. Jack
escreve muito bem, mas temos aqui e ali algumas confusões devido a vírgulas mal
colocadas ou uma ordenação das palavras e orações que ficaram meio confusas, provavelmente
surgidas da tradução do inglês e não retificadas numa revisão mais cuidada
posteriormente (atenção para isso Fantasy!). Mas fora isso temos um bom livro.
Capa excelente, diagramação estupenda e... letras inacreditavelmente miúdas
(pô, Fantasy!!).
Jack
Whyte lança então esta série em que retrata, a cada volume, um dos três grandes
heróis escoceses de todos os tempos. O primeiro é, convenientemente, o mais
famoso, Willian Wallace, depois virão Robert Bruce (The Bruce tem uma ponta no
filme, já citado) e James Douglas (de quem nunca ouvi falar a não ser, talvez,
numa citação num dos livros de Bernard Cornwell, mas não estou bem certo disso).
Se a
redução pretendida pela Fantasy, de trazer o filme ao livro, como jogada de
marketing, é boa e conveniente, a expectativa de um leitor assíduo por um filme
pipoca logo atrapalha, já que o livro é mais denso e tem muito menos ação. Não
que isso seja ruim, no todo, mas o início muito bom, com o prólogo em que o
primo de Will, James, o visita na prisão em Londres, antes de sua execução
(quem não lembra da tortura a que Wallace foi submetido, no filme?), parece nos
levar a uma leitura sombria e dolorosa com prenúncios de aventura épica. Teríamos
então uma conjunção de aventura com conteúdo, o que me atrai sempre,
incondicionalmente. Perfeito, comprei o livro!
Aí
caí de cara na história, ávido por esta narrativa que para mim seria The Best! Mas
o livro não é o que parece. Há muita movimentação entre a família de Wallace, o
povo local, as intrigas que levaram a sucessão do rei Alexandre, morto, e os
interesses amorosos do herói. Um bom pano de fundo é necessário, claro, mas no
caso me parece extenso a ponto de desequilibrar a trama. Juro que nas primeiras
duzentas páginas, parece que leio um romance de costumes, tipo Jane Eyre, de
Charlotte Brontë, ou Orgulho e Preconceito, de Jane Austen. Nada mau se você
está procurando por livros de época (o YA de antigamente), mas aquela verve do
guerreiro brandindo seu imenso montante escocês com o rosto pintado de azul e
enfrentando seus opressores ingleses, como visto no filme, fica muito aquém no
livro.
Óbvio
que Hollywood exagera tudo! Talvez o livro seja até bem mais fiel,
historicamente, e não cabe a mim ir atrás disso neste momento, mas acho que o
marketing abraçado pela editora de vender a trilogia com o nome Corações
Valentes, talvez tenha sido um tiro no pé! Uma história de Wallace? Não. Uma
história da própria formação da Escócia, na verdade, em que Wallace aparece
meio escondido. Há, sim, ação, momentos de interesse genuinamente adolescente,
como nas cenas onde Ewan Scringeour exibe sua perícia com o arco longo inglês.
Aliás, as passagens com Ewan, o mestre arqueiro que ensinou tudo o que Willian
sabe sobre o arco e o bastão militar, são as melhores, partindo do comecinho quando
ainda tenta ajudar os dois meninos Wallace, após os pais de Will serem
trucidados.
Gostaria
de esclarecer que não sou do tipo que procura ação a todo custo. Não! Procuro
imersão na leitura, e ela só veio com menor intensidade do que esperava. O
livro me parece frio demais. Tudo muito certinho, calculado, elaborado, como se
visto de dentro de uma sala com ar-condiinado... Não descontrai, como nas ditas
cenas de ação, entende? Aquele certo caos em que ficamos boiando por um
instante, ouvindo gritos e sentindo os cheiros da carnificina, só para sermos
resgatados de volta pelo autor, nos braços do herói. Parece que tento saborear
um bife tentado não me ater que é na verdade uma carne cozida enlatada, sem
muita gordura ou sangue. Algo do tipo diet.
Há
um problema grave na estratégia que Whyte tomou para contar esta história: desde
o princípio é James Wallace quem nos conta as desventuras e os feitos de
Willian, nas quais, muitas vezes, ele sequer participa. Cada fato sobre a vida
de Wallace nos vem sempre por seu intermédio, requentadas, de segunda ou terceira
mão e, de um personagem secundário que deveria se ater ao papel de narrador,
Jamye tem um papel muito mais ativo a um ponto que ele aparece muito mais que
Will. O personagem principal é Willian Wallace, mas revelado tão de longe que
vemos o próprio autor metido nas roupas de James Wallace nos contando a
história, lá, num arquivo histórico, num museu ou numa universidade moderna, ao
invés de vermos as cenas da época se desenrolando diante de nossos olhos.
É
então um festival de flashbacks que junto com a dificuldade que tive de saber
quem é que está falando (períodos longos demais em parágrafos intermináveis que
são de um personagem, de repente são interrompidos por uma linha, com alguma
interjeição de alguém e então o assunto é retomado e não se fica sabendo se é
uma continuação da fala anterior ou é outro personagem que tomou a palavra),
torna a história bem confusa, às vezes.
Mr.
Whyte também tem um certa dificuldade de inserir os fatos históricos que marcam
este volume e o período que ele abrange. No capítulo 11 James se encontra com o
arcebispo Wishart, de Glasgow, e muita informação sobre a formação escocesa da
época e as mudanças que se esperam são expostas ao leitor de uma forma
praticamente didática, com o pequeno padre James sentado e o bispo falando sem
parar; uma aula de história do possível declínio do poder inglês, a ascensão
dos burgos e a derrocada da nobreza. Deu até sono. O ideal é que as
informações sejam inseridas no transcorrer da obra, no meio da trama, como
parte do argumento proposto na narrativa, não usar um personagem para contar a
história a outro e assim, canhestramente, o autor nos dizer o que se passa. Isso
se repete depois, em outras ocasiões, com outros personagens. Se me permitem a
crítica um pouco mais enfática, na minha opinião, isso ou é coisa de escritor
pouco hábil ou preguiçoso!
Jack
Whyte termina o livro de forma um tanto decepcionante, já que após um evento de
suma importância na vida de Willian Wallace, que efetivamente o transformou no
herói conhecido hoje, ele opta por apenas dizer que depois daquilo veio a
batalha de Stirling Bridge e não toca numa linha do assunto! Ou Jack odeia
cenas de batalhas ou simplesmente não tem a manha de narrá-las. E,
convenhamos... Se estamos falando de um grande guerreiro medieval que se
envolveu no próprio processo de libertação escocesa, sangrento e arrebatador,
não esmiuçar as batalhas é até omissão! Parece que, ao querer intencionalmente
se afastar do clássico de Hollywood, o autor opta por uma personalização de seu
texto prejudicial à própria obra em si.
No
final temos um bom livro, que me inspira por seu valor literário, pelas ideias
de liberdade e de luta de um grande homem. Só gostaria de ter visto mais paixão
e menos didatismo deste grande autor. Pretendo ler os outros, com Bruce e
Douglas, já que seus nomes são citados neste primeiro volume. Ver esta história
por outros olhos, não os esgotados por Hollywood, parece ser bem interessante.
Em suma, temos um livro... Interessante; mas nem de longe uma obra imperdível.
Série
Corações Valentes:
1. O Rebelde
2. Renegade
ALBARUS ANDREOS