Uma vez, quando fazia minha pós em Língua Portuguesa Voltada a Formação de Leitores, conversei com meu professor de cinema e disse que havia comprado o Manual do Roteiro, de Syd Field (Objetiva, 224 páginas, R$ 44,90). Ele, professor doutor em cinema pela USP, no mesmo instante, me disse para jogá-lo no lixo. Afinal, como todo bom professor de cinema da USP, odiava Hollywood e tinha gosto mesmo era pelo cinema surrealista espanhol de Buñuel e coisas do tipo. Bem, eu não joguei fora o livro mas também não li, até agora, quando fui aconselhado pelo meu editor a fazê-lo. Não é uma leitura obrigatória para romancistas. Syd Field deixa bem claro que escrever romances é diferente de escrever roteiros ou peças de teatro. Por isso, este Manual do Roteiro serve a você, escritor, apenas como bagagem cultural, a não ser que seu objetivo seja escrever roteiros, mesmo, para Hollywood! Mas, para escritores mais chinfrins, como eu, há muitos lances legais sobre organização pessoal na escrita, macetes e dicas sobre cinema, e ainda revela um pouco da realidade de Hollywood. Afinal é um "receituário de bolo".
O autor se contradiz algumas vezes. Por exemplo, elogia pra caramba o roteiro de Chinatown (EUA, 1974. Vencedor do Oscar na categoria de melhor roteiro original em 1975) e passa o livro inteiro citando o filme como exemplo de aula, mas diz que tomou contato com o filme primeiro e depois com o roteiro. Quando assistiu, achou o filme chato e até cochilou, contudo, quando leu o roteiro achou o máximo. “Um dos melhores roteiros que já viu na vida”! Como assim? Quando lê o roteiro é tudo de bom, mas quando vê o filme é ruim? O cara está ensinando a escrever roteiros e aquele que ele considera um dos melhores já feitos acaba por produzir um filme que ele achou chato???
Fiquei surpreso com certos pontos, como a filosofia do grande cineasta francês Jean Renoir, citado por Field, de que o cinema é uma “arte menor”, já que não cabe a uma pessoa realizar todas as partes de um filme, ficando então, o trabalho de criação, esparramado pelas mãos de muita gente, sugerindo e colaborando, para poder se considerar verdadeira arte como a escrita, a música e a pintura. Nunca tinha pensado nisso... Certamente, meu professor de cinema da USP, concordaria que cinema de Hollywood não é arte, definitivamente.
Mas, falando da técnica do roteiro em si, jamais me sentaria diante de um monte de fichinhas e começaria a inventar o que colocar em cada uma, sem ter uma história já em mente a ser despejada numa página. Escrever, para mim, vem da vontade de exprimir uma história que, se pode não estar completamente formada quando surge, a ambição de desenvolvê-la leva a finalização do texto. Não teria também, como o autor sugere, nenhuma possibilidade de escrever por encomenda de alguém. Me parece a coisa mais sem sentido do mundo! Aquilo de ter que pensar nos Plot Points, no final de cada Ato (porque o roteirista é “obrigado” a tê-los no seu roteiro!) me parece um troço robotizado e artificial demais. Essas amarras me incomodam muito como escritor! Mas... depois do estruturalismo russo, de Vladimir Propp e o monomito de Joseph Campbell, existe uma fórmula para criar filmes. Syd Field diz como é que se faz, e meu professor de cinema quer que ele vá a &#@$%&*.
Convém saber que os romancistas e novelistas americanos de ficção fantástica, YA e subgêneros mais cultuados, têm as regras do roteiro na manga. Isso é uma vantagem que pode aconselhar que você leia este livro, como eu fiz. Os gringos sabem lá como trabalhar com elas (vide George R. R. Martin, romancista e roteirista) e criam obras com potencial de adaptação cinematográfica. Portanto, se você curte romances americanos e deseja dar uma estrutura similar ao seu livro, o Manual de Syd Field, pode ajudar. As proposições dele a respeito das adaptações são muito pertinentes e claras. Field faz um ótimo questionamento mostrando o que é a adaptação de um livro e como é o roteiro com relação ao original ou a uma peça de teatro (e eu acrescentaria quadrinhos e videogames). Muito bem colocado.
Escritores de roteiro, diz Field, são pessoas que se sentam com uma vaga ideia apenas, retirada de algum lugar, e a transformam em roteiro, que depois pode virar filme. É a diferença de um escritor de romances, o segundo sabe o que escrever, o primeiro procura inventar o que escrever. Não vejo arte nisso. Não vejo espontaneidade. É mais como algum tipo de garimpo, um dentista que dá uma olhada na sua arcada, preenche sua fichinha, dente a dente, e começa a cuidar de um depois do outro.
E além disso, o autor começa o livro com uma declaração infeliz: “Algumas pessoas tem talento, outras não. Talento é um dom divino; ou você tem ou não tem”. E com essa declaração ele quase me perdeu logo de cara (pág. XVI da Introdução). Contradiz, aliás, muito do que ele escreve nesse Manual, pois ele cita aos montes gente boa que começou errando e depois produziu grandes roteiros que renderam bilhões aos produtores.
Discordo tão frontalmente disso que chega a me dar coceiras. Na minha opinião, não tem nada disso de talento ser algo inato, tipo: “ou você tem ou não tem”. De jeito nenhum! Talento é só uma coisa que vem depois de você treinar muito, arduamente e, necessariamente, sentindo prazer nisso! Ler é o começo para todo escritor, e ler muito é a direção certa para todo escritor que se preza. Só lê muito quem gosta muito de literatura, a ponto de, num determinado momento, achar que pode escrever também, pois reconhece as tramas, vê as nuanças, sente as tensões e as distribuições de narrativa pelo papel, aprecia ou não personagens e consegue ver melhores soluções para eles, se emociona e vê porquê, se desaponta e sabe o que não funcionou... Escrever é um ato de coragem, impulsionado muito pela vaidade, mas significa botar a cara a tapa também. Quem escreve se autoproclama escritor e, conscientemente ou não, procura apreço; mas se expõe ao desapreço e deve estar consciente disso. Talento vem de se meter a escrever com ardor e paixão. É querer aprender, querer acertar e aceitar críticas positivamente, e pode escolher entre elas as que lhe servem como “conselhos” e “toques” e tentar de novo e de novo. Um hora se acerta, o autor vai adquirir sensibilidade para perceber isso, e começa a achar um rumo, inventa seus macetes, percebe seus pontos fortes e fracos. De repente está escrevendo bem... e vem um cara e diz que é “Dom de Deus”, porque “se não fosse por Ele você não teria conseguido”??? Acho que Deus tem assuntos mais importantes com que se preocupar.
ALBARUS ANDREOS