O Eterno Barnes - Salustiano Luiz de Souza



Poucas páginas de O Eterno Barnes (Editora Novo Século, 248 páginas, R$29,90) foram necessárias para que eu recebesse um baque de realidade: “Caraca! Estou lendo um livro escrito por um cara que sabe escrever!”, e bem demais, diga-se de passagem. Tão bem que até intimida. Salustiano Luiz de Souza é catarinense, nascido na cidade de Itajaí, advogado e ex-professor universitário. Já se aventurou por contos e artigos antes, mas esse é seu primeiro romance publicado. Não vem de agora sua intimidade com as letras, mas não é apenas sua excelente escrita que salta aos olhos, mas também seu argumento narrativo tão bem engendrado e colado, com personagens reais e salientes, imiscuindo-se na seara da ficção científica sombria, a lá Mary Shelley.

O livro é completamente consciente do seu papel; maduro, tão milimetricamente bem construído que dá inveja. É literatura mainstream, pela sua qualidade, pelos seus devaneios espirituosos e sua reflexão intensa, do início ao fim. Salustiano é um ótimo frasista, capaz de compor aberturas para livros alheios, facilmente. Tem o controle da boa narrativa, seus trejeitos e meios. Maneja a arte da reflexão prazerosamente, emitindo e refletindo pensamentos. Sabe impressionar, sabe criar interesse, sabe instigar e conduzir o leitor. O Eterno Barnes é um livro que se aventura no fantástico quando propõe a imortalidade ao ser humano e nos instiga a descobrir como consegui-la.

Como toda FC, se apega ao jargão científico para se desenrolar, dando aquela sensação de erudição ao texto que, de repente, lança o leitor no meio de um mundo totalmente desconhecido. No caso em questão, a neurociência, além de pinceladas bem embasadas em várias outras áreas médicas. Só que Salustiano sabe como bem fazer isso. Não exagera, ou, se faz isso, em algumas ocasiões, sabe como nos jogar num contexto em que esse estranhamento faz parte de um todo maior. Meio que entendemos, meio que sabemos do que se trata, exatamente a medida certa para nos compreendermos ignorantes, mas não no extremo de estarmos lendo um texto estritamente técnico e enfadonho. É criativo quando precisa e absolutamente ciente ao manipular os clichês ao seu favor, quando quer.

E a história toda se desenrola realmente sobre um clichezão: um cientista louco à procura da imortalidade. Daí o Eterno Barnes dialogar com a obra prima de Mary Shelley. No caso, ao invés de querer criar vida a partir de restos mortos, o Dr. Barnes quer perpetuar-se, tomando um corpo jovem e saudável, descartando o decrépito e doente que possui. Lembrando que no livro de Shelley, o Dr. Frankenstein consegue sucesso na sua empreitada, mas é um sucesso dúbio, parcial, já que a oferta de partes humanas para seu experimento não era da qualidade que desejaria, mas a disponível, já que toda coleta era feita ilegalmente, por debaixo dos panos, em cemitérios e morgues. Ficou aquela sensação, como a narrativa de Shelley nos mostrou, que talvez o experimento pudesse ter sido melhor, alcançado mais sucesso, se o protagonista tivesse à sua disposição matéria prima de melhor qualidade.

Como o doutor Victor Frankenstein o nosso, brasileiro, doutor Barnes, é inteligente, sagaz, aético e frio o suficiente para saber que nada pode dar errado, se quiser alcançar o sucesso, mas ao mesmo tempo está desesperado para admitir pequenos desvios de trajetória. E aí a grande mancada se realiza, no bom e velho estilo Lei de Murphy. Até a metade do livro, temos um banho de realismo, um texto plausível que carrega consigo o principal ingrediente da boa literatura fantástica: credibilidade. Digo até o meio do livro, porque a partir daí este é exatamente o ingrediente que se perde, para minha consternação.

Na primeira metade, há aqui e ali ínfimos deslizes e pontos de reflexão, que talvez pudessem ser melhor resolvidos. Por exemplo: quando Barnes entrega o notebook selado para James compilar e decifrar os dados obtidos dos impulsos cerebrais, que possibilitaram o desenrolar da trama toda. No texto é dito que não há qualquer possibilidade de James realizar cópias dos dados, que há lacres em todos os locais que impossibilitariam ao especialista em computação abrir o computador. Mas logo em seguida o autor mostra lá, uma entrada de cartão micro SD, na parte de trás do equipamento, algo que James não vira antes “por estar na parte de trás do notebook”. Bem... não é tão difícil assim se achar uma entrada de cartão, mesmo que pequenina. Qualquer adolescente sabe. Imaginando-se ainda que James é um especialista, ficou um troço bem ingênuo! Mais ou menos mudamos o conceito anterior sobre Barnes, que não é tão bom em informática por ter deixado passar uma falha assim. Estupidez demais na verdade. Ficou meio forçado.

Um pouco pior, a meu ver, é o ponto onde Barnes começa a realizar a cirurgia intracraniana em Alexandre, o paciente com morte cerebral. Onde é que ele está fazendo essa cirurgia, que deixará o paciente desacordado por vários dias? Num hospital? Mas dá para entrar num hospital e mexer na cuca de um sujeito qualquer ao bel prazer do médico? E os equipamentos e os objetos específicos que Barnes utiliza, de onde vieram se não do hospital? Dá para reunir tudo aquilo de ir utilizando sem pedir ou explicar nada para a administração ou o corpo médico de lá? Como explicar que os procedimentos internos da instituição permitam que um médico, seja ele quem for, ocupe um sala de cirurgia e realize operações inexplicáveis? Dr. Frankenstein tinha lá seu laboratório em seu sótão, Barnes não.

Os personagens, na primeira metade da obra, nadam de braçada. Cada um deles colabora inegavelmente com a trama. Além de Barnes, há Lourdes, a amante, também médica, complementa a formação científica com a religiosidade exacerbada, cooptada para ajudar o médico na sua experiência. Há Tatiana, sedutora, sagaz, calculista, escalando a pirâmide social; Bruno, o médico ambicioso, inteligente, inescrupuloso. Todos perfeitamente críveis e redondos. Psicologicamente bem estruturados. Cada um, indivíduo com pensamentos próprios e objetivos bem definidos, com as nuanças de personalidade que os definem. A cada capítulo percebemos a mudança de narrador, passando de um personagem para outro, acompanhamos suas maneiras de ver os fatos, de raciocinar com suas próprias visões de mundo, suas ideias e mesquinharias.

Então chegamos a página 125. Sai o escritor Salustiano Luiz de Souza, o Habilidoso, e entra sua nêmeses, o aspirante Salustiano Luiz de Souza, o Titubeante. Até então havia O Eterno Barnes psicológico, minucioso, bem escrito e coerente, e então de um página para outra, perdemos toda a coerência e objetividade brilhantemente elaborada. Simplesmente não entendo como o escritor entornou um caminhão de areia em sua própria história, que estava indo tão bem. A partir dessa tal página, há toda uma sequência em que a coerência alcançada, toda a credibilidade conquistada, todo o bom senso que vinha norteando um excelente exemplar de boa literatura, é flagrantemente abandonado e uma batelada de fatos jogados de qualquer jeito, explicações estapafúrdias e desencontros lógicos, aparecem.

Barnes, de um cientista frio e competente, meticuloso, um homem capaz, de ética tortuosa e objetivos sombrios, de repente, torna-se um aventureiro descuidado, pouco factível e contraditório com a figura que havíamos conhecido. A maneira como resolve executar seus plano contradiz e obsta todo o cuidado com que vinha atuando desde então. Chega a ser irritante a maneira como o escritor trata o episódio que deveria ser o mais importante do livro, a hora em que o Dr. Barnes, auxiliado pela amante, Dra. Lourdes, resolve fazer a transferência de seu “eu” para o corpo do paciente Alexandre. Como é que de uma hora para outra o médico resolve que “tem muito o que fazer e que vai deixar os detalhes para depois”? Desde quando isso é uma alternativa para um cientista? Desde quando é razoável que detalhes sejam relegados a um segundo plano quando se lida com as próprias chances de vida numa experiência fantástica e pouco plausível?

Um ponto bem destacado pelo autor, por exemplo, é o fato de que o cérebro, embora controle a dor em todo o corpo, não é, ele próprio, sensível a dor. As camadas, músculos e tecidos que o envolvem, sim, doem, por isso temos dor de cabeça, mas a dor não vem do cérebro. Barnes diz isso e quatro parágrafos depois expõe estar “em dúvida quanto a que anestésico usar em si próprio, já que precisava estar à frente de todo o procedimento cirúrgico e que havia alguns problemas que precisava levar em consideração, o primeiro era a dor, já que precisaria perfurar o cérebro”... Peraí, ou doi ou não doi! Não, não entendi mal. Era do cérebro mesmo que se estava tratando e não das tais camadas que o envolvem.

E Barnes, planejou tudinho, deu nó em pingo d’água para convencer Lourdes a ajudá-lo no “transplante”, porque não poderia fazer tudo sozinho, principalmente depois de transferir-se para Alexandre. Lourdes seria então responsável por “limpar” tudo. Perfeito! Mas de última hora, resolve o destino de Lourdes de uma forma totalmente inesperada, contradizendo tudo o que vinha planejando, com a intenção de não deixar “testemunhas”, que poderiam “estragar tudo”... Mas que decisão é essa? Por acaso dois corpos amontoados e um computador que se apagaria após a transferência entram como no plano? Que bobagem! A explicação do escritor é falha até não poder mais. A coerência é absolutamente defenestrada. Uma pena.

Tatiana, depois de ter sido descrita como esperta e perfeitamente antenada no caráter duvidoso de Bruno, depois de James e Barnes terem empacotado, não fica nem com um tiquinho de medo de que seja Bruno a pessoa que resolveu apagar os dois? Na verdade, o próprio autor faz com que ela chegue a essa conclusão, mas passa por cima desse raciocínio perfeitamente factível, transformando a personagem numa mocinha burrinha e desmiolada que não liga lé com cré. Ela então chega a telefonar para Bruno para tirar satisfação, como se essa fosse uma atitude sensata a se fazer com um presumível assassino em série. Ela deveria ter dado no pé, não é não?

Temos a conclusão perturbadora da história do Dr. Barnes de um forma até aceitável, com implicações que elevam o status do Dr. Bruno na obra. Mas as articulações para que isso ocorra, a investigação da polícia, por exemplo, são muito ruins. Mera necessidade. Um desperdício de boas oportunidades narrativas. O livro mereceria mais umas duzentas páginas para agregar mais valor ao drama dos personagens, elevar a massa crítica e produzir melhores resultados. O Dr. Barnes, de repente é abandonado no texto, como se sua trajetória na história tivesse se resolvido, o que não acontece. Ficamos então com um livro que não agrada por seu todo, desequilibrado e falho em seu alargamento dos fatos. Em especial, ficou um sentimento de que tudo poderia ser melhor, mas não foi.


Albarus Andreos

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