A Estrela do Tempo
Capítulo 5 – Gincana do Gonzaga
24/10
Mais um dia comum da escola, o que é estranho, por que eu
começava a não me lembrar de várias coisas que aconteciam ao meu redor.
Precisava de uma comprovação de que a minha linha do tempo estava correta e ela
veio fantasiada no aviso do professor Marquinhos.
- Essa atividade é pra próxima semana, a aula de amanhã não
irá acontecer por conta da gincana do gonzaga.
- A gincana do Gonzaga é amanhã? – Morcego acordou de
sopetão ao ouvir a instrução do professor.
- Mais uma vez servindo de papagaio, Thiago? – Morcego tinha
a mania de repetir a última coisa que o professor falava. Era um disfarce pra
que ninguém percebesse que ele estava dormindo... não funcionava.
Tínhamos que formar uma equipe com cinco integrantes.
- Eu, você, Anna, Lari e mais quem? – Não precisavam ser
pessoas da mesma sala. – Que tal o Cícero?
- Não, não mesmo.
- Por que não? – Fui muito incisivo, meu ciúme não podia ser
tão perceptível assim.
- Ora, ora, por que...
- Vocês já tem grupo? – Moisés, um cara normal, nem chato,
nem legal, nem popular, nem esquecido, nos abordou.
- Por que o Moisés já está no nosso grupo. – Levantei e
apertei a mão dele. – Bem-vindo...
{...}
A gincana do Gonzaga iniciava as
festividades de final de ano. Consigo me lembrar muito bem dessa, pois foi a
única, depois de muito tempo, em que consegui subir ao pódio; um comemorado
terceiro lugar. Era a chance que a vida me dava para fazer melhor... na
verdade, não podia, minha linha do tempo já estava bagunçada o suficiente,
minha memória começava a esquecer de coisas que pareciam marcantes, era melhor me
contentar com o terceirão de novo. Antes um pássaro na mão do que um futuro
voando. Anna não tinha ido para escola. Avisamos para Lari do nosso time, ela
não pareceu muito empolgada, acho que aceitou mesmo por causa do Morcego. Mais
tarde, liguei para Anna, queria saber o motivo da sua falta e me assegurar que
ela iria amanhã.
- Então, Anna, a equipe sou eu, você...
-
Josh? – Ela me interrompeu bruscamente, não era do seu perfil fazer isso, pela
sua voz, havia
ali
uma angústia que não podia esperar. – Você já teve um pressentimento ruim?
-
Sim, vários, mas não ligo muito pra essas coisas, por quê?
- Eu estou com um que nem me deixou ir para a aula, nem me deixou dormir
direito, é um aperto no peito, parece que eu preciso avisar algo pra alguém,
não sei, está estranho.
- Mas você faltou aula só por causa disso?
- Quem está sentindo a agonia, eu ou você? – Anna era péssima
administrando sentimentos adversos. Sempre que passava por algum problema
virava uma metralhadora de patadas para todos os lados.
- Não falei por mal, só acho...
- Eu estou um pouco mal-humorada, Josh, nos falamos amanhã, ok? – Só
deu tempo de contar quais eram os integrantes da equipe e dizer que formaríamos
um grupo no whatsapp para nos
comunicarmos melhor. Não era hora de acreditar em pressentimentos, a vida já
estava louca demais pra isso.
25/10
- Cadê o maldito, Moisés? Ele
pediu pra ficar com a gente, cadê ele? – Os professores pediram para que
formássemos o time logo na entrada.
- Ele mandou um recado pro grupo
dizendo que não viria, você não viu, Thi? – Lari era um poço de calma, reforçando
a minha ideia de que não estava nem aí para a gincana.
- Ele não vem?!? E agora?! o que
vamos fazer!? – Morcego só faltava arrancar os cabelos
- Já está feito. – Me aproximei
ao lado de Ivanzinho. – Ele será do nosso time.
- Esse moleque não!!! Não
mesmo!!!
- Calma, Thiago, eu até queria te
pedir desculpas...
- Cala a boca, Ivanzinho!!!!
Ivanzinho sempre dedurava as
horas de cochilo do Morcego. Os professores até o elegeram como o juiz do sono,
ele tinha que ficar “ligado” e servir como um despertador dentro da sala.
“Professor, o Thiago está
roncando e me impossibilitando de absorver integralmente o conteúdo.”
Era bem inteligente, já conseguia
ver um benefício em tê-lo no time.
- Ele não ficará nem por cima do
meu cadáver.
- Lari, por favor. – Não tínhamos
tempo para drama.
- Thi, deixe de ser criança,
vamos, o menino está com a gente e acabou. – Era muito bom poder apelar pra ela
e ver a cara de idiota que Morcego fazia quando percebia que a batalha estava
perdida.
Os times já estavam escalados e
perfilados. O único ser estranho era o Ivanzinho, apesar de toda controvérsia
de Morcego, ele ficou. Também não ia muito com a sua cara, odiava quando queria
mostrar que sabia mais que todo mundo ou que tinha extraído mais da aula do que
qualquer ser ali presente. Vivia pedindo para fazer duas perguntas e sempre
atropelava a fala dos outros. Era bem chato, mas tinha sua serventia.
“Professor, já que ainda restam
42 segundos de aula, o senhor poderia resumir toda a explicação só para
reforçar o conteúdo? ”
- Qual é a estratégia? –
Ivanzinho parecia interessado.
- Você fica em silêncio o tempo
todo e nós vencemos. – Morcego o odiava com todas as letras maiúsculas.
- Não fale assim. – Tentei
proteger o menino. – Ele faz parte do time, será útil, assim como todos nós,
não é, time? – Estendi a mão para que todos fizessem o mesmo e a gente gritasse
algo do tipo: “Vaaaaaai Tiiiiimeeeee!!!!”
- Corta essa, Josh. – Anna, ainda
de mal humor, foi em direção ao palco e nós a seguimos. Parecia que só eu e
Morcego estávamos animados com aquilo, e, no meu caso, nem era por uma possível
vitória.
A primeira prova era bem
interessante; cada equipe iria escolher dois integrantes para fazer uma
performance imitando alguém famoso. Podia ser um bate-papo, um diálogo, algo
artístico, qualquer coisa do tipo. Eu precisava ficar para a última prova, não
podia participar nessa (e também não arriscaria a minha imitação de Louro José
na frente de tanta gente). Lari era muito envergonhada e muito baixinha, no
máximo ela imitaria a Tristeza do Divertida mente. Morcego imitava muito
bem o sono dos ursos que precisavam hibernar por meses. Na verdade, não via
ninguém ali com algum talento para imitação. Estávamos num mato sem cachorro e
perseguidos por guepardos.
- Eu sei imitar um japonês
vendendo pastel. – Ivanzinho tentou ser a salvação da pátria, estava muito longe
disso.
- São os chineses que vendem
pastel, seu idiota! – Morcego quase bateu no menino.
- E os japoneses não podem
vender? É proibido comer pastel no Japão?
- Você é um idiota mesmo, Joseph,
tira ele da equipe!!
- Calma, Morcego, acho que os
japoneses realmente...
- Vocês são patéticos. – Anna
puxou Lari pela mão. – Vamos, a gente vai imitar as paquitas, é só chegar lá na
frente e rebolar um pouco, todos vão amar. – Não tivemos nem tempo de achar a
ideia ruim, elas já iam sumindo no horizonte enquanto nós três trocávamos
olhares desconfiados.
As duas subiram no palco, Anna
extremamente relaxada e Lari com certa apreensão. A música começou e veio junto
um show de sensualidade que eu nem sabia de onde tinha aparecido. A dança era
desordenada, mas os passos individuais eram enfeitiçadores. Morcego estava com
o olhar paralisado em sua amada, só mostrou alguma ação quando percebeu que
Ivanzinho quase babava. Isso rendeu um cascudo no pobre coitado. Eu também não
conseguia tirar os olhos de Anna, era mágico, seus movimentos, sua leveza, como
um ser podia ser tão apaixonante assim? Por alguns segundos me imaginei fazendo
algo que não deveria com ela, quer dizer, na minha idade atual não, no futuro,
quem sabe...
- Palmas para a dupla Anna e
Larissa!!!! – O ginásio foi ao delírio. Elas foram aclamadas e, como a votação
era popular, não foi muito difícil deduzir que já tinham ganhado.
- Eu sempre quis dançar como uma
paquita. – Lari sorria enquanto dava um abraço empolgado em Morcego.
- Sério? – Ivanzinho não conseguia
manter a boca fechada.
- Por que, moleque, algum
problema? – Os dois retomaram a gangorra de discussões enquanto Anna ia
guardando as suas coisas e pegando a mochila.
- Agora é com vocês. – Ela falou
me dando um beijo no rosto.
- Onde você vai, Anna? Nós somos
um time.
- Não estou boa pra isso, Josh,
vou dar alguma desculpa na direção e sair, quando eles pararem de brigar você
avisa que eu deixei um tchau. – Fiquei olhando ela ir embora. O maldito
pressentimento havia roubado toda a sua graça. Parecia preocupada, como se já
tivesse a certeza de que algo ruim iria acontecer.
- TPM. – Ivanzinho se aproximou.
– Eu li que isso...
- Cala a boca...
A segunda prova era de
conhecimentos gerais. Ivanzinho estava no time exatamente pra isso. Faltava
selecionar a outra parte da dupla. Na minha cabeça era simples, os dois
ganhavam essa prova e eu poderia escolher a melhor forma de acabar em terceiro
lugar.
- Eu e esse pirralho? Não
mesmo!!! NÃO MESMO!!!
- Ele só é um ano mais novo que a
gente, pare de chamá-lo assim.
- Fedelho, pode ser?
- Esqueça esse rancor besta, a
última prova é de corrida, eu corro muito mais do que você.
- E muito menos que todos os
outros
- Então, seu animal!!! Eu tenho mais chances!!! Não significa que eu
tenho muitas chances, mas tenho mais que você.
- Por que não decidimos no par ou
impar?
- Porque não temos cinco anos,
não choramos pra mamar e nossas mães não precisam passar o papel higiênico no
nosso...
- Vocês já resolveram? É que eu
queria saber logo quem é...
- CALA A BOCA, IVANZINHO!!!! –
Falamos em uma só voz. Quase pareceu ensaiado.
- Você vai participar dessa prova
ou então eu conto pra Lari Come-Come que você... que você... – Morcego tinha
vários segredos vergonhosos, mas nenhum vinha na minha mente, essa loucura de
viagem no tempo parece estar apagando algumas coisas que aconteceram, cada dia
mais eu sentia que algo fugia da minha cabeça. – que você... que você...
- Calma, Joseph, relaxa, nós
vamos ganhar isso. – Ele puxou Ivanzinho pelo braço. – Vamos, moleque, sem pressão,
se você disser alguma resposta errada eu te mato.
A prova foi bem fácil, moleza.
Ivanzinho sabia tudo, parecia uma enciclopédia. Morcego só fez figuração,
respondeu as perguntas mais fáceis, ainda assim cheio de incerteza. Conseguimos
acertar todas, mas não nos distanciamos tanto, pois várias equipes também foram
bem.
A última e derradeira prova; A
corrida do Gonzaga. Ela valia 40 pontos, pelos meus cálculos, nós precisaríamos
chegar em quarto para conseguir a terceira colocação. Forçar o resultado ajustaria
a minha linha temporal? Creio que sim, a esse puxão no tempo que dão o nome de
destino, né? O zelador Gonzaga participava dessa prova, por isso a gincana
levava o seu nome. Se alguém chegasse na frente dele ganhava automaticamente a
gincana, igual ao pomo de ouro do quadribol. Como ele era extremamente atlético
e saudável, se tornava impossível que adolescentes sedentários conseguissem tal
feito.
- Todos em suas marcas...
3...2...1... corram!!!! – Um estouro se ouviu e todos começaram a correr de forma
desordenada. Tínhamos que dar cinco voltas em todo pátio da escola. Não era
muita coisa, quer dizer, para o meu preparo físico, perseguir uma tartaruga idosa
já era algo bastante cansativo. O zelador Gonzaga, como sempre, disparou na
frente. Eu estava no primeiro bloco de trás, exatamente no quarto lugar que me
cabia. Ivanzinho e Morcego gritavam desesperadamente para eu “usar o nitro”,
mas fingia não escutá-los. Gonzaga estava começando a quarta volta quando algo
estranho aconteceu. Seus passos começaram a desacelerar até que pararam.
Ninguém entendeu muito bem o que era aquilo. Carlos, o faxineiro, tirou-o da
“pista” e avisou que deveríamos prosseguir.
- Não parem! Não parem! Não foi
nada demais!!! – Ele repetia inúmeras vezes. Todos o obedeceram, só havia um
grande problema; o ganhador da prova passava a ser o ganhador da gincana e eu
estava em quarto lugar. Deus do céu! Nem sabia que corria tanto! Evoquei o The
Flash, o Jay Garrick, o Zoom, o Wally West, o Flash Reverso e todos os outros
velocistas criados em um momento de crise criativa nos roteiristas da DC. Pela
silhueta, percebi que quem estava na minha frente era o Fred da Mamãe. Chamamos
ele assim depois do episódio em que a sua mãe foi na escola reivindicar uma
nota.
“Isso não é justo, professor,
você não pode prejudicar o bebê da mamãe.”
- Ei, Fred da mamãe, esse
terceiro lugar precisa ser meu.
- Fred do quê?!?! – A raiva
instantânea o desconcentrou.
- Tchau, Fred da mamãe, nos vemos
no berçário. – Passei dele como uma flecha. Já conseguia ver a linha de chegada
e a atravessei com um sorriso enorme no rosto. Todos invadiram o pátio, alguns
comemorando, outros agradecendo os componentes e a maioria só pela baderna
mesmo.
- Estou morto. – Apoiava as mãos
no joelho atrás de alguma respiração. Todos me abraçaram, no fim, ficamos
exatamente onde deveríamos estar.
- Isso requer uma comemoração. –
Sugeri.
- Comemorar o terceiro lugar? –
Ivanzinho era do tipo que só se acostumava com a vitória.
- Exatamente, numa competição há
vários vencedores, Ivanzinho, aprenda.
- E quem disse que alguém te
convidou para a comemoração, seu moleque?
- Eu sou do time, eu também
ajudei.
- Cala a boca, seu bosta...
{...}
Fomos na lanchonete mais próxima.
Nossas mães autorizaram a gente almoçar hambúrguer. Uma pena que Lari Come-Come
teve que ir pra casa e Morcego não deixou Ivanzinho vir de jeito nenhum.
- Anna não atende?
- Não, acho que ela esqueceu de
tirar o celular do silencioso.
- Ela não estava bem, né?
- Desde ontem que ela está com um
mau pressentimento, não consegue fazer nada direito.
- Por que ela não pergunta para
as estrelas o que é esse pressentimento? Ela acredita tanto em astros.
- Quer sugerir isso pra ela? –
Anna odiava que falassem com irônia.
- Não, obrigado. – Ficamos em
silêncio por alguns segundos. Estávamos saboreando o hambúrguer dos “campeões”
e pensando longe.
- Será que algo ruim está mesmo
pra acontecer, Morcego?
- Não pensa, Joseph, se não você
atrai.
- É que ela parecia tão séria.
- Será que é com o Baseado?
- Não, lógico que não. – Sorri
sem graça.
- É melhor pararmos de pensar
nisso, Joseph, na boa.
- É verdade, é melhor não
pensar... melhor não pensar... não pensar... pensar...
Anderson Shon é escritor e professor. Lançou o livro Um Poeta Crônico no final
de 2013 e, desde lá, já apareceu em coletâneas de poesia e de contos, já deu
oficinas e é figura certa nos diversos saraus de Salvador. É apaixonado por
quadrinhos, filmes esquisitos e músicas que ninguém ousa ouvir. Prepara seu
segundo para o segundo semestre de 2016 e evita comer alface no almoço para não
precisar dormir pela tarde.