27/09
Acordei com uma única missão; refazer a cena da estrela do tempo e pedir o amor de Anna pra
mim. Alguns passos simples deveriam ser dados e todos já foram muito bem arquitetados.
Primeiro eu preciso ir até a casa dela e levá-la para um local bem alto, bem alto mesmo. O
prédio onde Lari mora pode servir, pois lá tem uma escadaria que leva direto ao terraço. Nessa
parte entrará Morcego, pois eu não saberia como pedir o acesso para ela. Após feito,
estaremos prontos para ver aquela luz azul rodeando o sol e, enfim, poderei pedir para a
estrela do tempo um futuro ao lado da minha doce amada. Se bem me lembro, tudo
aconteceu lá pelas 10:30, tenho, aproximadamente, duas horas e onze minutos para colocar
meu plano em prática. Vamos lá:
{...}
- Já está pronta? – Entrei no quarto dela e a vi despojada na cama. Parecia que tinha acabado
de acordar, talvez por isso não foi me atender na porta.
- Pronta pra quê? – Seus cabelos azuis ficavam mais bonitos bagunçados.
- Pronta pra relembrar que o mundo é um bom lugar pra viver.
- Corta essa, Josh. – Anna pegou um dos travesseiros e pôs no rosto.
- Ainda está de luto? Um dia você me disse que o luto é a coisa mais idiota que existe, pois
ninguém que morre iria querer que pessoas queridas parassem as suas vidas.
- Isso é bem a minha cara mesmo. – Ela tirou o travesseiro. – O que você tem em mente?
- Não posso contar, muda de roupa e me segue.
- Vou desse jeito. – Ela se levantou lentamente. – Não é nada formal, né? – Formal, formal,
não, mas é o dia que mudará as nossas vidas. Logicamente, não podia falar isso pra ela, era
melhor deixá-la ir como quisesse, ou correria o risco de vê-la desistir.
- Não, põe só essa jaqueta, já ajuda.
- Como quiser. – Anna pegou-a e saímos do quarto.
Fase 1, concluída.
{...}
- Chegou cedo! – Morcego estava parado na frente do prédio de Lari olhando para o relógio.
- Perdão. – Anna exigiu que parássemos no meio do caminho para ela tomar café. Isso durou
mais tempo do que podia imaginar. – Acontece. – Falei enquanto dava um apertado abraço
nele.
- Oi Morcego, cadê a Lari? – Anna perguntou.
- Ela não vai chegar por agora, teve que ir ao médico, daqui a uma hora estará aqui.
- UMA HORA?!?! – Não consegui esconder a exclamação, isso poderia ser arriscado, uma hora
era muita coisa.
- Então podemos deixar pra depois, não é, Josh?
- Não, não podemos. – De jeito nenhum! – Morcego, você tem certeza que em uma hora ela
estará aqui?
- Certeza, certeza, não, mas ela disse que estaria.
- Temos que esperar, Anna!
- Não, Josh, não temos, a menos que você pare com todo esse mistério. – Olhei pros dois,
estava sendo alvo de um olhar fulminante de curiosidade. Havia pouca saída.
- Morcego, você já fala com os pais da Lari, nós só precisamos de alguém pra abrir o portão.
- Você é maluco??? Eu nunca vou ter coragem de falar com aqueles dois. – O pai de Lari era
um policial que tinha um porrete de estimação e uma filosofia de vida: “o homem que
encostar na minha filha vai servir de exemplo pra ninguém mais fazer isso.” No fundo, era só
um superprotetor do século passado, mas ainda assim a lenda era passada de pretendente à
pretendente e, Morcego, o mais frouxo de todos, não ousava pensar na hipótese de conhecê-
lo.
- Qual é o número do apartamento dela? – Anna perguntou querendo por um fim naquilo.
- É o 401, mas nem toque o interfone, o pai dela... NÃO!!!! – Tarde demais, ela já estava
próximo ao portão de acesso só esperando alguém do outro lado da linha atender.
- Alô. – Uma voz forte atendeu.
- Alô, aqui é o Morc... Thiago. – Anna engrossou a voz dela para parecer Morcego. Como o pai
de Lari nunca tinha escutado a voz dele, qualquer tom mais grave iria servir.
- Thiago?
- Sim, Thiago, o namorado da sua filha. – Coitado de Morcego, eu conseguia ver o coração dele
quase atravessando o peito.
- Namorado? – A voz veio como um soco.
- Exatamente, preciso ter uma conversa homem a homem com o senhor. – Morcego explodiu!
Nunca vi uma reação tão engraçada. O maluco saiu correndo sem rumo, sem direção, sem
amanhã... sem amanhã provavelmente, principalmente se ele se bater com o cassetete de
estimação do sogro. Um estalo foi ouvido e o portão se abriu. Puxei Anna pela mão e corremos
pelas escadas, não queria dar de cara com a fera esperando qualquer pessoa que saísse do
elevador. Fomos brincando de pular degraus, vi o sorriso dela brotar novamente, não o via
desde ontem, já sentia o quanto seria feliz ter aquele riso eternamente ao lado do meu.
Fase 2, concluída.
{...}
Enfim, chegamos. O céu azul, as poucas nuvens no céu, o sol gigantesco estava parado nos
observando. Olhei para o celular, estávamos antes do horário, tudo havia saído como
planejado.
- Anna, ontem eu queria te perguntar algo, você me disse para perguntar hoje.
- Pergunte, hoje parece ser um bom dia para respostas.
- Se você pudesse pedir qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, o que seria?
- Mas pedir pra quem?
- Pedir pro sol. – Ele estava brilhante, parecia alegre, o astro rei havia acordado em um bom
dia.
- Sinceramente, hoje eu pediria para ele trazer o Gonzaga de volta. – Eu não conhecia muito do
regulamento do departamento de “desejos”, mas sabia que envolver pessoas retornando da
morte era algo extremamente perigoso.
- Acho que esse é um pedido difícil de realizar.
- Os que são fáceis não são satisfatórios. – Ela estava coberta de razão.
- Pensa em outra coisa.
- Então pediria para voltar no tempo e trocar as minhas últimas palavras pra ele, já seria de
grande ajuda.
- Acredite. – Nós sentamos num banco que estava lá. – Voltar no tempo não é uma boa opção.
- É verdade. – Anna olhou pra mim curiosa. – Se o tempo voltar, do que iremos sentir saudade?
- Exato, Anna. – Ficamos em silêncio por alguns segundos. Algo me dizia que a estrela do
tempo, apesar de ser mais que uma lenda, ser uma certeza, não deveria ser usada para obrigar
ninguém a amar. Percebi que toda aquela viagem havia sido egoísta e mal pensada, precisava
mudar a vida através dos meus passos e não era um pedido que faria isso acontecer. Naquele
momento, fui envolto de uma coragem que nunca tinha experimentado. Continuei olhando
para Anna, a puxei e dei o beijo mais inesperado que ela podia ganhar na vida. Nos beijamos
por alguns segundos, ela não mostrou nenhum tipo de resistência, mas também não parecia
ter desejado aquilo em algum momento. Era estranho e legal. Aquele beijo estava tão
guardado a sete chaves que somente o tempo pôde fazê-lo acontecer.
- Josh. – Anna não conseguia esconder a surpresa. – Você me trouxe aqui em cima pra isso?
- Não sei, Anna. – Meu coração batia acelerado. – Não sei.
- Acho que temos que conversar agora, não é?
- Talvez, talvez. – Repetia as palavras por impulso, minha boca trêmula falava sozinha. – Mas
antes eu preciso de algo que está no seu bolso.
- No meu bolso? – Anna começou a tatear a jaqueta, era a mesma que ela havia comprado no
shopping no dia que tiramos as fotos e ela guardou o negativo. – Isso?
- É, exatamente isso. – Peguei o negativo da mão dela e mirei o olhar no sol. A estrela do
tempo já estava lá. No momento do beijo, percebi que não podia mudar tantas vidas, mudar
tantos sonhos, mexer com todas as pessoas daquela maneira. Não era justo pra minha
consciência, não era justo para o destino delas. O sacrifício nem sempre é nobre, às vezes
serve só para desfazer a burrada que foi feita. Em poucos dias, aprendi que as coisas podem
sair dos trilhos somente por não se medir uma boa ação. Tudo tem lados e é muito perigoso
quando você resolve refazê-lo. Respeitar o futuro e suas escolhas é fundamental, visitar o
passado para aprender com ele é essencial, mas o importante mesmo é fazer no presente tudo
que precisa ser feito, para que não haja o desejo de voltar. E, caso você volte, tente deixar
tudo no lugar, por mais impossível que seja.
- Estrela do tempo, eu quero que tudo volte ao normal.
- Com quem você está falando, Josh... Josh? Jooooosh? – A voz de Anna ia ficando longe, via
todo o tempo passar e aquela fuga ao passado estava terminando. Gonzaga voltaria a vida,
Baseado continuaria morto, Anna estaria se casando e seu beijo seria somente uma lembrança
de um tempo que soaria como um sonho, um longo e louco sonho.
{...}
- Ainda não está pronto, Joseph? Anna casa em algumas horas. – Morcego entrou na sala
disposto a me arrancar de lá.
- Deixa só o filme acabar.
- Você já assistiu esse filme, pare de enrolar.
- Mas é que essa é a melhor... – De repente um boletim de urgência invadiu a televisão. Eu
sempre tenho a impressão de que eles irão noticiar a morte de algum famoso importante.
- Aumenta, Joseph. – Morcego sentou ao meu lado.
- Urgente, um fenômeno natural chamado “estrela do tempo” está acontecendo neste exato
momento, se você quiser ver uma linda estrela azul rodeando o sol é necessário usar um filtro
para olhar pra ele, muito estudiosos afirmam que se alguém fizer um pedido ele irá se realizar
de imedia... – Desliguei a TV e me levantei.
- Será que é verdade, Joseph?
- Estrela do tempo? Verdade? Não seja inocente, Morcego, vamos, hoje será um dia
inesquecível para todos nós.
Anderson Shon é escritor e professor. Lançou o livro Um Poeta Crônico no final de 2013 e, desde lá, já apareceu em coletâneas de poesia e de contos, já deu oficinas e é figura certa nos diversos saraus de Salvador. É apaixonado por quadrinhos, filmes esquisitos e músicas que ninguém ousa ouvir. Prepara seu segundo para o segundo semestre de 2016 e evita comer alface no almoço para não precisar dormir pela tarde.