“Eu me corto porque não consigo lidar com as coisas. É simples assim. O mundo se torna um oceano, o oceano cai em cima de mim, o som da água é ensurdecedor, a água afoga meu coração, meu pânico fica do tamanho do mundo. Preciso de libertação, preciso me machucar mais do que o mundo pode me machucar. Só assim posso me reconfortar. Pronto, pronto.”
O meu interesse por Garota em pedaços (Outro Planeta, 2017,
384 p.) começou pelo explorar do meu Instagram, onde eu vi a foto da capa
original e a sinopse. O tema em questão me chamou muito a atenção, porque
apesar de ler muitos livros com personagens depressivos, não me recordava de
nenhum com automutilação. Para minha felicidade, a Planeta lançou o livro aqui
no Brasil em Abril, mas eu fiquei com o pé atrás por ser o livro de estreia da
Kathleen Glasgow e só o solicitei em parceria com a editora dois meses depois.
Acredito eu que minha enrolação não ajudou em nada, pois
quando o livro chegou e eu pude tocar a capa parecia que eu estava tocando as
cicatrizes da Charlotte. Difícil é a palavra que define a leitura de Garota em
pedaços, porém muito necessária. O livro é dividido em três partes: Um, Dois e
Três. Nossa protagonista é a Charlotte Davis, uma garota de dezessete anos que
apesar da pouca idade, passou por muitas coisas e tudo deu início após a morte
de seu pai.
Sua família desmoronou. Sua mãe, Misty se tornou uma
estranha, pois ela não soube lidar com a perda e descontava as dores que sentia na filha. Charlotte, no entanto, não
dividiu com ninguém o que estava passando e ser solitária tornou sua única
opção. No colégio não tinha amigos. Até a chegada de Ellis, uma aluna nova, na
sua vida. Mas da mesma forma que Ellis chegou, como um foguete, partiu.
"O corte é uma cerca que você constrói no próprio corpo para manter as pessoas do lado de fora, mas depois você chora para ser tocado. Mas a cerca é de arame farpado."
A primeira parte mostra a chegada de Charlotte ao Creeley Center,
uma clínica psiquiátrica, logo depois que ela tentou suicídio. O suicídio foi a
tentativa de alívio para tudo o que ela vinha passando: a morte do seu pai, a depressão,
a automutilação, a solidão, o fato de estar morando na rua com os amigos Evan e
Dump, viver alcoolizada, quase ser estuprada e sua melhor amiga estar vegetando
por conta de uma tentativa de suicídio. Pesado. E como disse com apenas
dezessete anos.
Coincidência ou não, estamos em Setembro, mês de prevenção
ao suicídio e conscientização da depressão. Então, acompanhando a vida da Charlotte, dá
para perceber que uma coisa foi levando à outra e tudo poderia ser resumido se
apenas uma pessoa, tivesse o tato de perceber que ela precisava de ajuda, que
na verdade ela só precisava de alguém que a ouvisse.
"Eu cortei todas as minhas palavras fora. Meu coração estava cheio demais delas."
O período que ela fica na clínica é fundamental para sua
decisão de mudar, pois lá ela não fala, só observa as garotas ao seu redor e
percebe que não está sozinha e que seu problema não é exclusivo e quando ela
começa a querer se abrir com as outras garotas, sua vida dá outro giro. Como
ela não pode pagar para continuar ali, precisa tomar uma decisão para onde
ir/com quem morar. Só sabia que morar com Misty não era uma opção, pois os
problemas que estavam no passado voltariam.
É então que ela se muda para Tucson, uma cidade bem
ensolarada no Arizona, onde mora um conhecido. Só que além dele ela não conhece
ninguém, e ele a deixa na mão, pois recebeu uma proposta de emprego
irrecusável. Confesso que nesta parte eu temi que a Charlotte tivesse uma
recaída, porque apesar dela estar disposta a mudar para melhor, um baque desses
desestabiliza qualquer um.
Pelo menos com um local para morar, ela precisava de um
emprego e aos poucos e com muita dificuldade sua vida foi trilhando novos
caminhos, ela até conhece uma pessoa mais velha, Riley West, que tem a alma tão
quebrada quanto a dela no Café onde conseguiu um emprego.
Garota em pedaços é um livro pesado, e você vê como sua alma
é sugada ao ler sobre a história de Charlotte ao mesmo tempo que é um livro
lindo. As cenas fortes só fazem com que tenhamos mais vontade de continuar
lendo. A forma como a autora escreve de forma tão crua, direta, com riqueza de detalhes
as cenas, o pensamento de Charlotte na fase em que não falava nada, enfim, me surpreendeu
muito.
"Cada aberração na minha pele é uma música. Encoste a boca em mim. Você vai ouvir uma infinita cantoria."
A Charlotte não consegue reconhecer que é uma pessoa forte,
até entendo. Só que tem horas que ela se põe tão para baixo que chega a ser
preocupante. Ela só consegue ver uma pessoa fraca, uma pessoa com muitos
defeitos e marcas espalhadas pelo seu corpo que estavam ali para lembra-la
sobre sua história.
Só posso encerrar esta resenha dizendo que Garota em pedaços
é uma leitura indispensável, que faz a gente refletir sobre nossas ações para
com o sentimento do próximo.